Membro da Direção Nacional do PCB, Mauro Iasi analisa os dilemas da esquerda para 2010
Por Júlio Delmanto
Dando continuidade à série "Eleições 2010", a Caros Amigos entrevistou o doutor em Sociologia pela USP e professor da UFRJ Mauro Iasi. Membro da Direção Nacional do Partido Comunista Brasileiro (PCB), é autor de, entre outros livros, As metamorfoses da consciência de classe: o PT entre a negação e o consentimento, no qual analisa – à luz de Marx e Freud –o que seria, segundo o autor, o processo de adaptação do Partido dos Trabalhadores à lógica capitalista. Iasi esteve em São Paulo participando do Congresso Brasileiro de Estudantes de Comunicação Social (Cobrecos), onde concedeu entrevista sobre as perspectivas para as eleições presidenciais de 2010.
Caros Amigos - O que estará em disputa nas eleições desse ano?
Diretamente, o que acaba sobrando nessa disputa é determinado muito pela correlação de forças. Infelizmente, em 2010 o bloco conservador do Brasil está disputando a direção de um mesmo projeto, diferente de outros momentos em que havia uma polarização mais de fundo em relação a projeto. Em 2010 você tem um grande campo de consenso dentro do bloco conservador sobre os rumos imediatos da economia, sobre a imagem de futuro que se quer para o país e que foi se consolidando do mandato do Collor pra cá. Isso empobrece muito a discussão das eleições.
Esse consenso na macropolítica econômica, nos limites do possível, na ideia central de ajudar a acumulação capitalista no Brasil e, a partir desse desenvolvimento capitalista muito pontualmente incidir sobre a questão social como uma intenção de legitimar o desenvolvimento capitalista, empobrece muito, deixa ausente uma postura do campo popular, do campo de resistência. O que está em jogo também é a necessidade dos trabalhadores apresentarem propostas alternativas que consigam apontar os limites desse consenso.
Há alguma diferença entre os projetos de PT e PSDB?
Acho que há diferenças dentro de um campo em comum. Eles partem dos mesmos pressupostos, comungam da mesma leitura de Brasil, a ideia de que o desenvolvimento do país passa por um desenvolvimento capitalista e que o Estado brasileiro tem que desenvolver um forte apoio ao desenvolvimento do capitalismo monopolista no Brasil sem intervir diretamente no projeto econômico.
As diferenças entre esses dois campos acabam sendo das particularidades das construções partidárias de PT e PSDB e por onde eles podem se legitimar. Cada um tem uma ferramenta necessária à consolidação da ordem. Se a gente ler os textos do Banco Mundial a partir de meados da década de 90, a grande dificuldade de implementação do que se chamava de ajuste estrutural era não apenas controlar os organismos de governo, era criar consensos para legitimar de alguma forma o grande impacto negativo dessas reformas chamadas neoliberais. Esse texto afirma que os núcleos de resistência são as organizações de cúpula dos empresários, dos setores fisiológicos do congresso e de organizações dos trabalhadores. De certa maneira há uma divisão de trabalho aí, o PSDB tinha muito mais elementos para costurar essa governança conservadora junto às organizações de cúpula do empresariado e dos setores fisiológicos, por conta da aliança DEM-PSDB. Faltava exatamente incorporar essas organizações de cúpula dos trabalhadores para legitimar essa reforma, e o PT acaba cumprindo isso. Exatamente por essas funções diferentes dentro do plano geral do bloco conversador é que o PT precisa desenvolver uma estratégia de governo que busque se legitimar diante desses setores. Infelizmente, isso não faz com que se produza aí uma dinâmica dentro da qual o bloco popular consiga impor conquistas e demandas a esse governo. As diferenças não são suficientes pra retirar o governo Lula e o PT de dentro do bloco conservador.
Você acha que existe a possibilidade do PT se posicionar mais à esquerda para fazer essa diferenciação junto aos eleitores?
Pela dinâmica que está colocada nas eleições isso pode acontecer, mas muito pouco. As prioridades e as grandes preocupações do PT hoje são muito mais voltadas para atrair setores do PMDB que, ao que me consta, não são mobilizáveis por nenhuma inflexão mais à esquerda. Nos próprios movimentos sociais nós estamos pagando o preço dos últimos oito anos: como foi dado um voto de confiança ao governo, ele se sente muito tranqüilo para manter o pouco que deu até agora como meio de garantir esse apoio. De certa maneira, o governo trabalha com o entendimento de que esses setores estão neutralizados por conta da política desenvolvida, o diálogo com setores da esquerda é muito mais no sentido de ameaça, de perder o pouquíssimo que foi conquistado. É pouco provável que nesse momento o governo acene com uma inflexão mais à esquerda, como o apoio do PMDB é prioritário nesse momento a discussão tem sido feita de um ponto de vista muito menos programático.
E qual será o papel do Lula?
O Lula descolou-se da política brasileira, reproduzindo uma trajetória clássica na análise política. Ele vem como expressão da entrada em cena dos trabalhadores na década de 80 e faz parte do movimento que levará à formação do PT e da CUT como expressão dessa classe, mas pouco a pouco se descola disso, se tornando a figura clássica de uma liderança carismática que utiliza muito mais de seus atributos pessoais e de identificação direta da classe do que a organização com partidos e projetos políticos. Então, a popularidade e a aceitação do Lula e do seu governo é inversamente proporcional à própria força organizativa e programática do PT. Ele não cresce a partir do crescimento da organização própria e independente da classe mas pelo contrário, quanto mais ele cresce mais ele enfraquece isso, produzindo uma identidade pessoal com a figura do presidente e não com um projeto político.
Basta ver quantas vezes em dois mandatos a classe trabalhadora foi convocada, mobilizada, para tarefas de governo: nenhuma vez sequer. O governo optou por uma forma de construção política que na ciência política é chamada "presidencialismo de coalizão", na qual as jogadas políticas são jogadas internas a esse critério palaciano dos bastidores. Os setores sociais raramente, ou nunca, são mobilizados para os enfrentamentos políticos. Então, o Lula acaba saindo do seu segundo mandato com uma popularidade alta, mas que não é transferível exatamente por ser colada na personalidade carismática do líder. O que se está tentando transferir é a luta de máquinas. O que beneficia o Lula é que as pessoas querem ter uma proximidade ao seu governo e isso facilita as alianças necessárias pra disputar as eleições, é isso que a Dilma leva de herança.
E como a esquerda deve se posicionar?
O papel da esquerda e dos movimentos populares nessa eleição é não cair nesse jogo do mero mecanismo e da engenharia política que acabou se cristalizando no Brasil. Nós estamos enfrentando o que poderia ser o final do primeiro governo popular numa total apatia, a discussão das eleições e das alternativas é meramente de nomes. O que seria fundamental é retomar a discussão programática, de que país precisamos, quais os limites desse modelo implementado e qual a perspectiva de futuro. Isso tem pouco espaço na engenharia da política eleitoral para 2010.
Mas você acha que essa retomada da discussão programática deve ser feita necessariamente através das eleições?
Infelizmente, parte do bloco de esquerda está capturada por essa forma conservadora das eleições, o que gera uma necessidade própria, de eleger deputado, de manter deputado... Isso necessariamente gera a necessidade de atingir coeficientes eleitorais, o que leva a alianças, o que faz com que cada vez o centro, que ao nosso ver seria o acúmulo programático, seja pouco a pouco substituído pela lógica das alianças meramente conjunturais, pela possibilidade de manter mandatos ou ampliar mandatos. Só isso que pode explicar, por exemplo, a aproximação, que agora parece pouco provável, entre o PSOL e a Marina Silva. E enquanto essas tentativas foram feitas, acabou se ocupando espaço da construção programática, o que faz com que agora a gente tenha pouco tempo, pois perdeu-se um tempo precioso.
É possível fazer esse acúmulo a partir das eleições? É, desde que você não pense as eleições de forma a cair nessa armadilha. Uma campanha nacional de partidos de esquerda, de movimentos sociais, que apresentasse uma crítica contundente e profunda a atual forma conservadora vigente e mobilizasse a população na defesa de seus interesses, cumpriria um papel mobilizador, esclarecedor, que permitiria aos trabalhadores recuperarem pouco a pouco sua independência. Apenas como uma forma de eleger um grupo de deputados para poder manter alguma máquina de mobilização para poder mobilizar para uma próxima eleição.
E tendo isso em vista, ainda há possibilidade da reedição da Frente de Esquerda (aliança entre PCB, PSOL e PSTU)?
A Frente de Esquerda hoje não está descartada, mas ela se atrasou muito por conta dessas indefinições que falávamos. No primeiro momento, a própria indefinição da candidatura da Heloísa Helena, o que abriu um vazio que deveria ser coberto exatamente por esse esforço de construção programática, mais do que a definição de um nome. A perspectiva da Frente de Esquerda no momento é muito pouca. Diante da indefinição de candidatura do PSOL, que de certa forma tinha uma boa perspectiva na pré-candidatura do Plínio Arruda Sampaio, vista com bons olhos na Frente mas que inexplicablemente a direção nacional não apostou nisso, deu inicio às negociações com o PV, e acabou se produzindo a candidatura do Zé Maria pelo PSTU. Nesse quadro, o PCB muito provavelmente lançará uma candidatura própria. Como a maior parte das convenções partidárias ocorrerá em março, isso pode se alterar se os partidos da Frente tiverem maturidade suficiente pra fazer dessa proposta uma discussão minimamente programática.
O curioso nessa aproximação de setores do PSOL com o PV é que eles parecem ter se esquecido de que o PV não tinha o menor interesse nessa aliança...
É, esqueceram de combinar com o PV... Pela lógica do PV, ele tem mais a perder do que a ganhar com uma aliança com o PSOL. O PV quer alguém que financie a sua campanha, o PSOL também, então do ponto de vista de estrutura de campanha a troca não seria benéfica para o PV. E eles tem menos problemas que os partidos de esquerda, pois como não partem de princípios muito sólidos, pode negociar com um campo muito mais amplo. Por ejemplo, no Rio de Janeiro ele vai para candidatura do Gabeira ao lado de PSDB e DEM. Em São Paulo ele se aproxima do PTB. Então, essas aproximações mostraram claramente o desenho político da candidatura da Marina Silva.
Nesse sentido, o PSOL fez um movimento difícil de compreender. A gente só pode entender essa aproximação com a Marina em cima da necessidade de obter uma campanha viável do ponto de vista do coeficiente eleitoral, para garantir a eleição de mandatos. É um movimento que eu vejo como errôneo, não só porque descaracteriza – acaba muito mais rapidamente do que a própria trajetória do PT mostrando uma adequação dos meios que acabam prejudicando os fins – mas também porque acho que do ponto de vista eleitoral é um equívoco.
Em 2006, o PCB apoiou Lula no 2º turno contra Alckmin. Na possibilidade muito provável de um 2º turno entre Dilma e Serra, qual será o posicionamento do partido?
A gente optou por votar no Lula contra o Alckmin, para depois permanecer na oposição a Lula. Essa é uma discussão que cada vez mais deve ser feita na política brasileira. O voto útil tem sentido diante da ameaça de um retrocesso, diante de uma luta de classes em que o setor centrista apresenta pelo menos a disponibilidade de uma negociação com uma abertura à esquerda. Não é o que nós temos visto. A Dilma é uma incógnita, ela é uma candidata que até agora teve uma trajetória praticamente burocrática, já entra direto no campo de governo, como administradora, e que ocupa um vazio deixado pela saída de cena do Zé Dirceu. Então, o grau de possibilidade que ela tem de ser sensível a demandas tem se apresentado muito menor do que o próprio Lula. Se há divergências no governo Lula, elas não se expressaram dentro da Casa Civil, que sempre foi um instrumento da política conservadora.
Num confronto direto entra uma suposta candidatura do Serra e a Dilma, a discussão do movimento socialista no Brasil será até que ponto as diferenças entre eles representariam a necessidade de um apoio, até porque em nenhum momento esse setor demonstrou a necessidade de ampliar suas alianças para um leque mais popular. Se for esse cenário, muito provavelmente a disputa eleitoral restrita ao campo conservador fará com que a gente se mantenha independente. O que nós precisamos fazer é superar a armadilha que nos tem levado a esse dilema. A grande questão é tornar mais nítido o campo político no Brasil. O fato de restar duas candidaturas não significa que a gente tenha que se basear na lógica do menos ruim. Na verdade, para a gente, as eleições de 2010 são parte de um longo processo que começou com a eleição do Fernando Henrique e que aponta para uma longa hegemonia conservadora. Se isso é verdade, uma posição agora momentânea de apoio não ajuda no acúmulo de forças das nossas tarefas mais adiante.
Você falou em presidencialismo de coalizão, isso seria uma opção do governo Lula ou a única forma possível de se chegar à presidência?
Uma vez optando por chegar ao poder eleitoralmente, o governo tinha legitimidade suficiente para poder criar rupturas...
Mas ele ia romper com quem financiou sua campanha?
Se você pegar a lógica eleitoral, ele chega com tal legitimidade ao governo que tinha como fazer, por exemplo, uma reforma política, um processo constituinte novo. Eu posso chegar ao governo com amarras e criar fatos políticos que me dêem melhores condições na disputa. Se a gente pegar os governos de frente popular na América Latina, sem entrar na caracterização deles, todos eles produzem reformas políticas de fundo e alterações constitucionais. Não é por acaso que o Brasil não faz isso. Então, a opção não é apenas a maneira de chegar ao poder, mas a maneira de manter-se no poder: optou-se pela eficiente máquina fisiológica de funcionamento do Estado. É eficiente esse método, só que é uma eficiência que mantém os limites da ação dentro da ordem.
Você falou que se perdeu um tempo precioso discutindo nomes ao invés de programa, mas, de forma mais geral, a esquerda não perde muito tempo com as eleições?
Perde. Na verdade, se a gente fizer uma análise dos últimos anos, a esquerda conseguiu avanços interessantes na luta social. Estivemos juntos em todas as lutas de resistência, no enfrentamento da crise, das demissões, na previdência, os trabalhadores pontualmente entraram em greve na defesa de seus direitos... Nessas lutas concretas a esquerda esteve junta, o que nos levou de um patamar de defensiva para um patamar de resistência, o que já é melhor. Agora, a eleição é um buraco negro, ela atrai tudo para a sua lógica. Faltou para certas organizações da esquerda uma maior maturidade para utilizar esse espaço não no sentido de acomodação.
Pensando na esquerda de forma mais ampla, nessas eleições você tem duas posições: de um lado o movimento social vai manter-se nas suas ações e vai ignorar o primeiro turno, e de um outro tem gente tão preocupada com as eleições que acaba fragmentando sua estratégia e a conexão com a tática imediata. Eu acho que são dois erros. A esquerda teria que ter maturidade para se manter firme em sua linha de resistência e acúmulo na construção de um pólo hegemônico e participar das eleições, transformando esse espaço numa possibilidade de apresentação dessas demandas, contrapondo o bloco conservador.
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